segunda-feira, setembro 23, 2013

Era uma vez um museu chamado de Arte Popular


Há muito, muito tempo houve em Belém a «Exposição do Mundo Português», que por entre discursos e desfiles, mastros e bandeiras, fontes e lagos, teve seis pavilhões dedicados à «Vida Popular», concebidos pelos arquitectos Veloso Reis Carmelo e João Simões e decorados por artistas como Carlos Botelho, Estrela Faria e Eduardo Anahory, alavancando (como agora se diz) aquilo fora ensaiado alguns anos antes em Genebra na Exposição de Arte Popular Portuguesa. A partir daí, os visionários António Ferro (SNP/SNI) e Duarte Pacheco (Obras Públicas) haveriam de conseguir que daqueles pavilhões provisórios nascesse um Museu de Arte Popular: em 1941 foi lançado um concurso público no âmbito do Plano de Obras da Praça do Império e da marginal de Belém, que compreendia a «adaptação e modificação dos Pavilhões da Secção Etnográfica Metropolitana a Museu de Arte Popular». Em 1944, a decoração interior seria entregue a Jorge Segurado. Em 1948, eis o Museu de Arte Popular, vulgo MAP!

O MAP, fisicamente falando, resultou da junção de vários paralelepípedos, assimétricos, provisórios, feitos de uma alvenaria mista que lhe dá um ar vernacular, naïf, mas que se enquadra perfeitamente naquele palco cénico da magnífica esplanada sobre o Tejo, que vai do Padrão ao «Espelho de Água» (outro edifício efémero de 1940), e, mais recentemente, ao luso-nipónico Jardim das Cerejeiras. Uma arquitectura modernista, extremamente funcional, com espaços preocupados com o futuro programa expositivo. As colecções cobriam todas as regiões do país e ocupavam cada uma das suas cinco salas, decoradas a preceito por alguns dos mais famosos artistas à época.

Mas nada disso serviu de muito nas últimas décadas, dadas as múltiplas tentativas de extinção por que passou o MAP, quiçá por força de um (in)compreensível mas celerado revisionismo histórico, ou porque a um país supostamente desenvolvido não se lhe possa ‘perdoar’ qualquer memória rural, serôdia, pacóvia.

Assim, nos últimos 20 anos andaram aos engulhos para o classificarem (merecidamente) Monumento de Interesse Público – o processo abriu em 1991 e encerrou em 2012 -, quiseram demoli-lo para construírem algo mais ‘moderno’, tentaram cobri-lo por um cubo de vidro e recheá-lo de imagens virtuais, tapando as reais (réplica do Museu do Língua do ‘país irmão’). E não fora o movimento de cidadania de 2009 pela sua manutenção e a esta hora não havia nem edifício nem classificação, apenas peças açambarcadas por terceiros. Chegados aqui, chego ao essencial, que importa alguém esclareça:

1. A que propósito, quando acabaram as obras co-financiadas por Bruxelas (no pressuposto de o serem para o Museu) e o MAP voltou a ter directora, o espólio do MAP continuou sob custódia do Museu de Etnologia (coisa diferente de Arte Popular)?
2. Quem impede o regresso do espólio ao MAP e a sua musealização in situ? Como é possível que tantos anos depois de uma luta pela afirmação da Arte Popular como autónoma da Etnologia o destino daquela sejam as reservas (vulgo, catacumbas) desta última, a modos que em ‘despojo de guerra’ entre antropólogos?
3. A que propósito se quer agora novamente extinguir o MAP, anunciando-se que vai ser transformado em algo a concessionar em ‘projeto’ a sujeitar a ‘concurso de ideias’? Que ‘petróleo’ haverá nas profundezas do MAP?
4. Então, depois do país ter usado as verbas da UE na sua recuperação, depois da guerra ganha ao tal ‘Museu do Mar da Língua’, depois do MAP estar classificado de Interesse Público, depois de se ter prometido publicamente a sua reinstalação; agora que já se percebeu que o ‘regional’ está na berra e é uma mais-valia em todos os sentidos (vide os êxitos de Joana Vasconcelos, as lojas revivalistas de artigos portugueses de antanho, etc.), mais a mais naquele local magnífico (e o Espelho de Água por repensar), é agora que se pretende acabar de vez com o MAP?

O MAP é um museu, compreende um edifício (classificado e concebido para museu) e um espólio (anexado por terceiros), pelo que tudo quanto não for feito para o mantermos enquanto tal, reinstalando-o e programando-o de forma a dá-lo a conhecer cada vez mais, será um atentado ao património e um apagar da memória colectiva, para já não dizer uma falta de vergonha imensa.


In Público (22.9.2013)

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