quinta-feira, janeiro 27, 2011

Mas um dia vai mudar...

Anteontem, fazia um frio medonho. Cumpri as rotinas: comprei os jornais, três, fui à pastelaria e sentei-me na mesa habitual, junto à vitrina maior. Estava embaciada e o interior do estabelecimento cheirava a café como lhe cumpre. Os clientes do costume e o ambiente de concerto falhado. O correio trouxera-me um livro de Ruben A., Um Adeus aos Deuses, editado pela devoção atenta de Liberto Cruz, chancela da Assírio & Alvim, e prefácio de Rosado Fernandes. Gostava muito do Ruben: do seu inesgotável talento para interpretar as coisas da vida, do júbilo esfuziante com que se movia, como andava, rápido, ziguezagueante, sorriso prazenteiro, transeunte sempre apressado.

Entrava na Redacção do Diário Popular, cumprimentava de fugida, sentava-se, invariavelmente, nas mesas de três jornalistas: Jacinto Baptista, José de Freitas e na minha. Por minutos. Não tinha tempo para obscuros devaneios. "Tudo na mesma. Mas um dia vai mudar. Não sei é quando." Três frases que resumiam analogias procuradas, desejos discretos, o pulsar agitado de um coração em permanente alvoroço.

Salazar detestava-o, tanto quanto ao estilo de que se servia para dizer o mundo. Despediu-o. "Este homem é destrambelhado." Não percebia a grandeza do funcionário. Tal como Marcelo Caetano injuriara Raul Brandão e o Húmus, num texto vergonhoso por ignorante e sórdido. Os tiranos execram aqueles que escapam às suas esquadrias. Ruben, sobre ser um prosador incomum, um romancista, um memorialista e um cronista de primeiríssima água, especializara-se em D. Pedro V, sua paixão de embalar.

"Tudo na mesma. Mas um dia vai mudar. Não sei é quando." Na pastelaria de bairro, sentado na segunda-feira de todas as decepções, recordo o amigo que batalhou contra as superstições da época, utilizando o adjectivo como modo de tomar partido e as espantosas criatividade e imaginação para se proteger da infâmia do tempo. Um Adeus aos Deuses é um livro único e, simultaneamente, a comovida expressão de quem ambiciona fugir para os seus mitos a fim de se refugiar das violências da realidade. A música que Ruben A. possuía era-lhe própria e sistema de exclusividade. A sensibilidade ilimitada de um criador extraordinário, cujo estilo é o particular panteísmo de quem quer ter a lua junto de si.

Na manhã de segunda-feira, no after day acabrunhado que nos impingem como novidade e festa manifesta-se, pegajosa e escorregadia, a nefasta tristeza de um dia que se continua a outros dias glaucos e viscosos. Revejo-o, saltitante, sorridente, célere a entrar na Redacção. Vai ali e vem já. Entrega o original e corre para a a saída. Ruben A. A recordação de épocas felizes, porque alagadas de esperança, sobrevém a todas as nefastas melancolias.



In Diário de Notícias

2 comentários:

Anónimo disse...

Marcello Caetano, ignorante? Essa tem graça.

Anónimo disse...

O que vale é que o camarada Lopes teve uma grande vitória.

Enquanto há cinco anos o camarada Jerónimo teve 474 mil votos, agora o camarada Lopes teve 300 mil.