domingo, março 14, 2010


Portugal é uma gincana -Buracos
A correcção atempada dos pavimentos deficientes pode poupar até 80 por cento do nosso consumo de combustível. Mas raramente usamos o remédio certo para esta "acne" asfáltica que ataca muitos dos mais de 100 mil quilómetros de estrada que o país tem. Por Victor Ferreira

Sem contar com as auto-estradas, Portugal tem 100 mil quilómetros de vias rodoviárias. Se as encaixássemos umas nas outras, dariam duas voltas e meia à Terra, pela linha do equador. Ou permitiriam percorrer um quarto da distância que separa o nosso planeta da Lua. Manter arranjado tanto asfalto pode ser um grande quebra-cabeças. E a quantidade de buracos que se atravessam no nosso caminho parecem a prova de que estamos longe da solução. Andar na estrada é uma gincana.

O tema pode parecer trivial, mas um pavimento em condições faz toda a diferença. E não é um problema dos condutores. Num país sem buracos, é toda a economia que agradece. Porque deficiências destas não custam dinheiro apenas a quem administra a estrada - e que mais cedo ou mais tarde vai ter de investir na reparação. Buracos e fendas na estrada são um rombo na carteira dos condutores, que perdem tempo, precisam de mais combustível e infligem maior desgaste na viatura. Porém, quem não tem carro também sofre. Ou porque tropeça e cai, ou porque ajuda a pagar a factura energética de um país que importa todo o combustível que consome. Se a factura não vem na estação de serviço, virá no recibo dos impostos. Alguém terá de pagar o desequilíbrio das elevadas importações. Juntem-se a isto os custos ambientais (ruído e mais poluição atmosférica), que afectam todos por igual e obtém-se um cocktail amargo. O que fazer para baixar a factura?

Tapar buracos não chega, ao contrário do que se poderia pensar. É preciso fazer algo mais, ou, como diz Paulo Pereira, engenheiro e docente na Universidade do Minho, é necessária "uma estratégia racional: o tratamento certo, na estrada certa, no tempo certo", explica, aludindo à "estratégia dos três cês". Para isso, é preciso "informação rodoviária fiável e actualizada" e considerar "padrões de qualidade da rede ou, em alternativa, os recursos financeiros disponíveis", acrescenta. O problema, dizemos nós, é que informação fiável e actualizada não é coisa que abunde. O Cidades contactou diversas entidades e especialistas. Ninguém tem ou conhece o retrato global dos mais de 100 mil quilómetros de estradas do país. Nem ninguém sabe quanto investe o país na recuperação de pavimentos ou nessa espécie de desporto nacional (sobretudo em período pré-autárquicas) do tapar-buracos.

Um puzzle difícil
A gestão da nossa rede viária está dispersa por uma miríade de entidades: 90 mil quilómetros estão entregues aos 308 concelhos do país, o resto pertence à Estradas de Portugal (EP), empresa que gere cerca de 14 mil quilómetros de estradas nacionais, regionais, itinerários principais e complementares. Em que estado se encontram estas vias (excluindo as auto-estradas)? Mais uma vez, o diagnóstico é um puzzle difícil de montar. Resta uma opção: confiar no que diz o povo - e aí voltamos ao Minho. Porque foram os distritos de Viana do Castelo (56 reclamações) e de Braga (72 reclamações) que, em 2009, mais se queixaram dos pavimentos. Os dados são da EP, que recebe sugestões e reclamações referentes a todas as vias nacionais (e não só às da rede sob a sua jurisdição), através do serviço Estrada Livre, disponível por telefone e pela Internet. Lisboa (49 reclamações) fecha o "top 3" dos distritos que mais reclamam contra os pavimentos.

O clima chuvoso do Minho pode ajudar a explicar por que há muitas reclamações naquela zona. Afinal, a água é inimiga dos pavimentos (ver infografia na página 7). Mas, a avaliar pelos números, esta questão é uma preocupação menor - constitui apenas 13,39 por cento das 2442 queixas registadas pela EP. Percentagem semelhante tem o Instituto de Infra-estruturas Rodoviárias (Inir), que tutela a rede concessionada pelo Estado, e que inclui as auto-estradas. Em 2008, 15 por cento das reclamações pelo Inir tinham a ver com a faixa de rodagem, categoria que inclui deficiências no pavimento, mas também outros problemas.

São números que parecem ficar aquém da realidade. O problema é que, por cá, ao contrário do Reino Unido - que tem uma estimativa de quantos buracos existem nas estradas (cerca de um milhão, em 2009, dizia o diário Guardian na última sexta-feira), não há uma ideia da dimensão do problema. Há as queixas, mas também há quem não se dê ao trabalho de reclamar, ao passo que outros encaminham as suas observações para as autarquias que têm, no fundo, o maior quinhão de responsabilidades, porque gerem 90 por cento das vias que usamos.

A tempo, ainda se poupa
O concelho de Lisboa tem a seu cargo 1500km de via. A autarquia do Porto gere 660km e a de Coimbra cerca de 1000km. É muito betume asfáltico para orçamentos que, muitas vezes, só destinam dinheiro para intervenções reactivas, quando o mal está feito, e menos para intervenções preventivas. Estas últimas, segundo um estudo de Paulo Pereira, podem poupar 133 por cento do custo de reparação e 80 por cento do consumo de combustível, em relação às reparações reactivas. A projecção deste investigador, que lidera a escola de Engenharia do Minho, é válida para uma via pequena (2km de comprimento), com seis vias (três em cada sentido) e um tráfego médio diário anual de 40 mil utilizadores. Concluiu que, nestas condições, ainda pouparíamos 80 por cento no tempo de percurso, se repararmos com a estratégia certa.


A isto soma-se a falta de fiscalização, outro problema tão ou mais grave do que a reacção tardia. "Não há um controlo de qualidade dos trabalhos executados. Se a qualidade não for verificada pelo dono da obra, é possível que o adjudicatário não use uma qualidade tão boa, para obter um lucro maior", sublinha Luís de Picado Santos, professor e investigador do Instituto Superior Técnico, em Lisboa. "Tecnologicamente, não há nenhuma razão para os pavimentos realizados em Portugal serem de qualidade inferior a quaisquer outros. Agora há contingências de construção que são usualmente pouco fiscalizadas por parte dos donos da rede, as quais podem induzir menor qualidade final", aponta este engenheiro civil que durante muitos anos esteve ligado à Faculdade de Ciência e Tecnologia de Coimbra. Picado Santos situa o custo de um metro quadrado de pavimento entre 4 e 10 euros (dependendo do pavimento usado). A vida útil das vias, segundo o que é aceite no sector, é de 20 anos, desde que haja prevenção. Uma hipótese que, na realidade portuguesa, parece ser meramente académica. Lisboa anunciou na última semana intervenção de 8,8 milhões de euros em 280 ruas. Dois dias depois, o Departamento Municipal de Arruamentos do Porto anunciou dois milhões de euros para reparação dos pavimentos.

Culpar a chuva e o Inverno é a saída mais simples. Porque muita desta "acne" asfáltica que desfigura as nossas cidades resultam de anos de abandono, como, aliás, reconheceu, esta semana, o vereador de Lisboa que detém este pelouro, Fernando Nunes da Silva.

O líder dos autarcas portugueses admite que os maiores proprietários de estradas, as autarquias, não controlam muitas das obras feitas em estradas. "Há falta de fiscalização, mas temos outro problema grave", diz Fernando Ruas, presidente da Câmara de Viseu e da Associação Nacional de Municípios Portugueses, aludindo ao facto de o Estado não pagar às autarquias aquilo que prometeu, quando iniciou a transferência de muitos quilómetros para os municípios. Mais caricato ainda é que há 3400km de estradas, de norte a sul, que não são nem gestão das câmaras nem da Estradas de Portugal. São uma espécie de "terra de ninguém", até que alguém lhe pegue ou algo de grave aconteça e desperte a atenção do país.

Flores para embelezar
"Penso que [tapar buracos] não é uma fatalidade e que os cidadãos não têm de se conformar" com as estradas transformadas em "queijos suíços", defende, por seu lado, o engenheiro Picado Santos. Mas, dada a dimensão (ou profundidade) do problema, a resignação parece ser o único remédio. Que o digam Luís Miguel Ferraz ou Joaquim Santos, dois condutores de Leiria cujos carros não sobreviveram a buracos e lombas que provocaram danos. Bem reclamaram para a câmara, mas sem sucesso.

Os ingleses, que não passam o tempo todo nos pubs, criaram um site (fillthathole.org.uk), para assinalar buracos. Mas o artista Pete Dungey não é de modas e tapa logo buracos com vasos de flores. Por cá, não resolveria o problema, mas sempre se transformava Portugal num jardim à beira-mar.
Com Graça Barbosa Ribeiro, Aníbal Rodrigues e Idalina Silva

1 comentário:

Luís Bonifácio disse...

Acho que deve ser uma questão da qualidade das obras.
Porque é que os técnicos da câmara não repararam que a Avenida das Forças Armadas tem exactamente o mesmo piso que tinha quando eu vim para Lisboa (1991). Já lá vão 19 anos e ainda não tem um único buraco.