terça-feira, setembro 23, 2008

A Ocorrência

Na SIC Notícias, o jornalista Mário Crespo anuncia: “Vai haver condições favoráveis à ocorrência de aguaceiros”. Se eu fosse um estrangeiro a viver em Portugal, ou um “bife” a tentar aprender português, não iria nunca compreender o significado do oráculo de Mário Crespo. Não sendo estrangeiro, compreendo que esta é a única forma de ele dizer o que precisa de ser dito. Porque na verdade, Mário Crespo está apenas a “desdizer”, a recuar na proclamação, anular uma fatalidade. Sobrepôr o bendito (o sol) sobre o maldito (a chuva).

Esta forma de narrativa diária com leve inspiração jornalística – o acto do “desdiz que disse” - limita-se a anunciar, ou a ocultar, as más notícias da forma mais pomposa possível. Vai chover? Que chatice, não digam nada às crianças. Deixem lá o Mário Crespo segredar algo sobre as “condições favoráveis à ocorrência de aguaceiros” e não se fala mais nisso. É como dizer que o Verão morreu de “doença prolongada”. O problema é precisamente esse: o Verão 2008 morre de doença prolongada e a doença chama-se vida. Impunha-se uma celebração, mas...

Alguém se lembra de como tudo começou? Claro que não. A ideia é esquecer, “desdizer”. Mas para isso precisamos de alguém que nos “des-diga” (o Mário Crespo). Ou de alguém que nos descreva (qualquer um, desde que tenha uma memória que sobreviva à ressaca). Alguém se lembra dos jornalistas sumariamente despedidos do jornal Primeiro de Janeiro? E da surpreendente libertação de Ingrid Betancourt? Parece que foi o ano passado. Do fracasso da selecção no Euro 2008? Do assalto ao BES, com vítimas? Deixou de se falar. E o estranho directo do Cavaco Silva sobre o estatuto dos Açores às 20h00 nos três noticiários? A Quinta da Fonte, apagar-se-á do mapa, como se fosse o genérico inicial da antiga série de cowboys Bonanza, lembram-se?

Um milagre: este ano Portugal não ardeu. Mas agora que o Verão chega ao fim (equinócio de Outono marcado para as 16h22 de 2ª feira), será útil executar sem cerimónia uma política de terra queimada sobre os grandes “debates” do estio. Exemplo? As suspeitas sobre a acidentada linha ferroviária do Tua, a estranha calendarização na “oferta” da Casa dos Bicos à Fundação José Saramago, ou o mais genuíno “desdiz-que-disse” do Verão, o de Vicente Moura, que em 48 horas se demitiu e recandidatou a presidente do Comité Olímpico Português. Debates? É apagá-los da memória, com terebentina, água oxigenada ou chuva. Porque hoje, sexta feira, se tudo correr como se espera, estarão garantidas as condições favoráveis à ocorrência de aguaceiros. Debates? Quanto mais debates mais eu gosto de ti.

Miguel Somsen. In Jornal METRO de 19 Setembro 2008

Sem comentários: