sexta-feira, maio 09, 2008

O QUARTETO

Não sei o que era pior no cinema Quarteto. Seria a qualidade da projecção sobre tela de lençol gasto, os degraus mal iluminados onde quebrávamos o tornozelo, as cadeiras mal-afinadas das quais se deslizava para o chão? Talvez fossem as sessões de cinema com cheiro a mofo, o alinhamento de cartazes anunciando “brevemente” filmes que nunca chegariam a estrear, ou os preços do serviço de bar. Agora que o cinema Quarteto fechou, todos sabemos o que é pior: o pior é o cinema Quarteto ter fechado. Claro que um mal nunca vem só: três semanas depois do encerramento definitivo das salas, em Março último, morreu-se-lhe o seu único inspirador e fundador, Pedro Bandeira Freire.

Eu partilhei pontual e pessoalmente a truculência do Pedro Bandeira ao vivo, lembro-me de ele ter sido dos poucos a fazer frente a João César Monteiro na ante-estreia pública da farsa de Branca de Neve (mandou o realizador àquela parte e César Monteiro respondeu na mesma moeda, foi o melhor espectáculo daquela noite). Como tantos outros de nós, filhos de uma geração-série B, aprendi a ver cinema no Quarteto, não na Cinemateca. Descobri Dario Argento antes de Asia Argento, Pasolini antes de Visconti, e o Sam Raimi de Evid Dead II antes de o Sam Raimi de Homem Aranha 3. Mas por ainda estar a viver um período de nojo, não me interessa ficar a bezerrar em nostalgia de trazer-por-casa. A surpresa não foi o Quarteto ter fechado mas sim ter ficado aberto tanto tempo.

O que me interessa, como dizem os americanos, é the big picture. Prefiro profetizar sobre a realidade da política de distribuição e exibição em Portugal, por exemplo. Porque depois de Bandeira Freire e do Quarteto, o próximo alvo a abater será decerto Paulo Branco e os cinemas King. Não posso, no entanto, deixar de enunciar as razões oficiais que levaram ao fecho do Quarteto. Alegadamente, a Inspecção-Geral de Actividades Culturais (IGAC), uma espécie de brigada de elite da ASAE, considerou que o Quarteto não tinha “saídas de emergência” nem “sistema de detecção de incêndios”. Realço a ironia de o Quarteto não ter também “acesso a deficientes”, porque isso leva-me a pensar no público “selecto” que acede livremente às restantes salas multiplex do país. Preferivelmente munidos de pipocas.

Os multiplexes chegaram há 30 anos, o zapping há mais de 15, e agora temos a internet, é tudo igual: quando não gostamos de uma coisa, saltamos para outra, é como sair duma sala do Corte Inglés e entrar noutra. Não admira que o emprego seja precário, que as relações não fidelizem, e que o portal Sapo ou a banda larga Kanguru tenham sucesso. Mas a modernidade vai matar o grande cinema – e tudo o resto passará a ser insignificante ou redundante. Afinal, o cinema agora pode ser descarregado pela internet e exibido em portáteis, telemóveis ou na sala privativa do Nuno Markl. O que sobra? A actividade cultural, sempre. Seja ela estatal ou de mecenas. Tendo em conta que a nossa câmara é incapaz de criar uma política de programação para uma sala como o São Jorge, não estou a ver grandes saídas culturais para o Quarteto. Portanto, sobram os mecenas. Mas esses, infelizmente, só pensam no Benfica.


Miguel Somsen

In Metro

1 comentário:

Anónimo disse...

O que sucedeu em Lisboa, sucedeu paralelamente na cidade de Göteborg. A crise é muito parecida por todos os lados. Só que depois dos Quartetos.....fica um vácuo, a Cinemateca...e o DVD. E vá lá....ainda ter uma Cinemateca, pois estes buracos culturais...já ninguém os quer tapar.

JA