sexta-feira, outubro 12, 2007

LIBERDADE

Deus criou o Homem, o homem inventou a roda, e daí foi um instante até se fazerem automóveis, asfaltarem estradas e os portugueses inaugurarem a) o túnel do Marquês, b) o Eixo Norte-Sul, e c) a extensão de metropolitano até Santa Apolónia em menos de um ano. Esta coincidência salomónica surpreende-me, parece Sócrates a jogar ao Monopólio: “O Carmona fica com o túnel, António Costa leva com o eixo, e logo se vê se o Terreiro do Paço não mete água”. Só não consigo perceber por que raio a Avenida da Liberdade está sistematicamente fechada ao trânsito. Será porque ninguém a quer ou porque todos querem?

Gostaria de recorrer a um inventário mais rigoroso para apoiar a tese sobre a paralisia da Avenida da Liberdade e da Baixa, mas, dadas as circunstâncias, vou ter de enumerar de memória. Em 2006, Gala do 14º aniversário da SIC. Em Abril, filmagem de um anúncio do BES com Cristiano Ronaldo. Em Junho, Festas de Lisboa. Dispenso o calendário litúrgico-protocolar para assumir todas as outras propostas como políticas e assertivas. O fecho da Praça do Comércio aos domingos, risível. O Dia Europeu Sem Carros, patético. Ou a gala de 15º aniversário da SIC, uma alegria. Só falta ler nos classificados: “Aluga-se Liberdade. Casamentos, Baptizados e Galas da SIC”. Eu não tenho nada contra a Gala da SIC, fenómeno esporádico que tende a realizar-se todos os anos por esta altura do campeonato (é como as monções: ainda que previsível, incomoda). Chateia-me no entanto que um local público (a Avenida da Liberdade é extensão do antigo Passeio Público, que terminava nos Restauradores) possa ser assim privado das suas liberdades por causa de uma entidade privada. Eu, se trabalhasse na SIC, também atirava o barro à parede. E na improvável eventualidade de ver deferida a minha solicitação, começaria a olhar para o calendário com outros olhos. Revéillon no aeroporto?

A única operação que não faz condicionar o trânsito na Liberdade são as obras que nunca se realizam para melhorar o trânsito na cidade. Tudo o resto é um sucesso, com maior ou menor perversão. O trânsito limitado pela Gala da SIC obrigou toda a gente a ficar em casa e ver a Gala da SIC, que este ano teve elefantes (brilhante metáfora sobre o pé-pesado dos automobilistas da avenida). No Dia Europeu Sem Carros, houve corridas de macas (metáfora tão subtil como um elefante na avenida). Esta é a altura em que o professor escreve no quadro: “Ruas=Carros. Passeio=Pessoas”. Claro que nada é assim tão linear: se toda a gente estaciona em cima do passeio, por que não hão-de as pessoas invadir a estrada?

Claro que, para um país de pernas para o ar, muito contribuem as acções dos seus ilustres. O Mourinho, por exemplo. Depois de sair de Londres com indemnização faraónica, Mourinho podia ter ido dar uma volta ao mundo, visitar as ruínas de Petra, o império de Timbuktu, o Mar dos Sargaços ou a plataforma Larsen C na Antártida. Pelo contrário, Mourinho voltou para Setúbal, para comer choco frito. Uns dias depois, estava no Campo Pequeno a apadrinhar uma campanha de sensibilização rodoviária com crianças. Que género de conselho poderá oferecer um treinador de futebol que viveu três anos em Londres e agora regressa a Setúbal? Imagino o soundbite: “Conduzam do lado direito da estrada!”. Ficou por confirmar a suspeita de Mourinho ter sido visto a entrar num comboio de Entrecampos em direcção ao Fogueteiro...

Miguel Somsen

(In Metro)

3 comentários:

Anónimo disse...

Viva o Bota-Abaixismo!!

Caso os carros fossem impedidos de passar nesta avenida, a ocupação para actividades lúdicas seria frequente e não ocasional.

Não há mais nada com que se incomodar?

AC

joãoeduardoseverino disse...

Bom post, excelente. Gostei e parabens a este blogue.

rui disse...

na mouche. já chega de tanta patetice inconsequente, tanta "iniciativa" a bloquear permanentemente uma das avenidas ( se não a avenida) mais importantes da cidade.